Apontamentos sobre o contrato de comodato

Josiane Mafra

Existem, como se sabe, diversas espécies de contratos. Alguns contratos são típicos, tendo, portanto, seus contornos mínimos estabelecidos em Lei, enquanto outros tantos são atípicos, visto que pautados pela liberdade que as partes têm para contratar, ainda que seja necessário fazê-lo dentro dos moldes gerais trazidos pelo Ordenamento Jurídico.

Contratos se prestam a fazer circular bens e serviços em nossa Sociedade. Contrata-se a todo o momento, muitas das vezes de modo informal, e isto não é diferente dentro do mercado imobiliário, que nos oferece um cenário vastíssimo para a movimentação de negócios e interesses.

Dentre os contratos imobiliários diariamente celebrados, tem-se o comodato que nada mais é que o empréstimo de coisas não fungíveis (vide art. 579 do Código Civil brasileiro – CCb). Ele se perfaz com a tradição (entrega) da coisa, não exigindo solenidades, como ocorre, por exemplo, com a compra e venda de um bem imóvel.

O comodato pode envolver tanto bens móveis quanto imóveis e se difere do contrato de mútuo por envolver a infungibilidade da coisa – ela não poderá, no comodato, ser substituída por outra, ainda que do mesmo gênero, quantidade e qualidade. O mútuo, ao contrário, envolve o consumo da coisa, não o seu mero uso, exigindo-se, na devolução, uma “coisa” com as mesmas características, gênero, qualidade e quantidade. Assim é que, por exemplo, quando é emprestado dinheiro, um pacote de arroz ou uma resma de papel se tem o mútuo e, por outro lado, quando se empresta um imóvel ou uma obra de arte se tem o comodato, porque exatamente aquele bem específico deverá ser devolvido ao final do contrato.

Conquanto não haja, em regra, a exigência de solenidade no comodato, que pode ser contratado, inclusive, de forma verbal, não é aconselhável que assim o seja feito, especialmente quando envolve bem imóvel, que além de usualmente envolver valor considerável diante de outros bens, importa numa magnitude dos interesses envolvidos.

No comodato, aparece a figura do comodante – o proprietário ou possuidor do bem – e do comodatário – aquele que recebe a coisa em comodato. Este último, inclusive, deverá zelar pelo bem como seu fosse seu, devolvendo-o, ao final do prazo, nas condições recebidas. Ele sequer poderá recobrar do comodante as despesas feitas com o uso e gozo da coisa emprestada, nos termos do que dispõe o art. 584 do CCb. Obviamente, despesas extraordinárias, especialmente com eventuais benfeitorias necessárias, podem implicar num ressarcimento, daí a importância do instrumento contratual para estabelecer, de forma expressa, eventuais responsabilidades ou dispensas também neste sentido.

O prazo da relação contratual também se faz importante, visto que, nos termos do art. 581 do CCb, se não houver prazo convencional, será presumido, como tal, o prazo necessário para o uso concedido, não podendo o comodante, salvo necessidade urgente e não prevista – reconhecida pelo Judiciário –, suspender o uso e gozo da coisa emprestada, antes de findo o prazo convencional ou aquele que se determine pelo uso outorgado. Cita-se como um exemplo desta possibilidade aquela situação na qual o comodante, tendo dois imóveis, empresta um ao comodatário e se vê, posteriormente, na necessidade de vender o outro no qual reside.

O término do contrato poderá se dar, ainda, em virtude do término do prazo contratual (seja o expressamente previsto ou aquele que se fizer compatível com o uso), pelo o uso inadequado do bem diante do pactuado ou, ainda, pela morte do comodatário. Também tem sido apontada pela jurisprudência o término pela morte do comodante, especialmente quando o contrato se deu por prazo indeterminado e houve a prévia notificação para desocupação do bem por parte dos sucessores.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. POSSE. BENS IMÓVEIS. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. COMODATO. PERSONALÍSSIMO. INTUITU PERSONAE. MORTE DO COMODANTE. REQUISITOS DO ART. 561 CPC. PRESENTES. DECISÃO QUE DETERMINA A REINTEGRAÇÃO DE POSSE. MANTIDA. Na hipótese houve o falecimento da comodante e, tendo em vista o caráter intuitu personae do contrato (personalíssimo) em questão, o juízo a quo deferiu a reintegração da posse do imóvel, motivo pelo qual deve mantida decisão reintegratória, pois presentes dos requisitos do art. 582 CC e do art. 561 CPC. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO.

(TJ-RS – AI: 70075264812 RS, Relator: Gelson Rolim Stocker, Data de Julgamento: 14/12/2017, Décima Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: 26/01/2018)

Vê-se a natureza personalíssima do comodato, o que impede, também a sua transmissão em caso de morte do comodatário aos seus sucessores.

Em razão da gratuidade, há, por parte de muitos, o receio de ser suscitada a usucapião do bem, caso o comodato se prolongue no tempo. Assim é que, exceto se houver uma mudança substancial e fática na realidade da posse, é certo que o comodatário não possui, com “ânimo de dono”, como sua a coisa, faltando, assim, elemento essencial para que requeira a usucapião. Veja, inclusive, um dos inúmeros entendimentos já exarados pelo nossos Tribunais neste sentido:

APELAÇÃO CÍVEL. POSSE (BENS IMÓVEIS). AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. COMODATO VERBAL E GRATUITO. COMPROVAÇÃO. POSSE INJUSTA DO COMODATÁRIO APÓS O PRAZO ESTIPULADO NA NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL PARA DESOCUPAÇÃO. Comprovada a existência de comodato verbal em relação ao imóvel postulado, e havendo constituição em mora por meio de notificação extrajudicial, a posse direta dos réus, comodatários, passou a ser injusta após o prazo estipulado na notificação em razão da precariedade, vício objetivo da posse. Provada, ademais, a posse anterior. Afastamento da exceção de usucapião, por ausência de animus domini. Manutenção do julgamento de procedência do pedido reintegratório. RECURSO DESPROVIDO À UNANIMIDADE. (Apelação Cível Nº 70061171955, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liege Puricelli Pires, Julgado em 11/12/2014).

Importante mencionar que, em eventual situação de risco do objeto do comodato em conjunto com outros pertencentes ao comodatário, este não poderá preferir a salvação dos seus, abandonando o bem daquele, sob pena de responder pelos danos havidos, ainda que atribua o fato a caso fortuito ou força maior (art. 583 do CCb). Afinal, o comodatário precisa, de fato, zelar pela coisa que lhe foi emprestada. E mais: havendo dois ou mais comodatários serão ambos solidariamente responsáveis junto ao comodante nesta e em todas as situações havidas em função do comodato.

Outro ponto igualmente importante sobre esta espécie de contrato é o fato que, sem autorização prévia especial, não poderão os tutores, curadores e administradores de bens alheios emprestar os bens confiados à sua guarda.

Frisa-se, enfim e por oportuno, que eventual contraprestação exigida do comodatário pelo comodante descaracterizará o comodato, resultando numa locação do bem ou arrendamento rural, conforme o caso. Não há, definitivamente, contraprestação pelo uso da coisa no comodato.

Josiane Mafra é advogada graduada pela Universidade Federal de Viçosa (UFV/MG), assessora e consultora jurídica, especialista em Direito Público (UNEC) e em Planejamento, Implementação e Gestão de Cursos de Educação a Distância (UFF-RJ). Mestre em Meio Ambiente e Sustentabilidade (UNEC). Articulista, parecerista e palestrante, com experiência, há 18 anos, junto aos mercados imobiliário, urbanístico e ambiental. Membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais (IAMG). Autora de diversas obras, dentre elas o “Livro digital de Documentação Imobiliária: aspectos teóricos e práticos” e o “Guia digital de Contratos Imobiliários”. Co-autora do livro “Segredos das mulheres empreendedoras do mercado imobiliário”.

 

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